Um psicanalista no seu bolso
Coluna Desatar Nós, com Prof. Dr. Psicanalista William Figueiredo

Um admirável mundo novo chegou para ficar!
George Orwell, com 1984; Ray Bradbury, com Fahrenheit 451; e Aldous Huxley, com Admirável Mundo Novo, desenharam as três maiores distopias literárias do século XX. Uma distopia, ao contrário de um futuro glorioso e próspero, é um mundo onde o Chapeleiro Maluco de Alice seria um distinto lorde educado.
Um mundo onde tudo deu errado. Esse é o medo que hoje avança como uma sombra silenciosa sobre os tempos atuais. Aqui, alguns temores são mais evidentes — como o desemprego, funções sociais que deixam de existir — e as teorias da conspiração reinam na web ao tom de O Exterminador do Futuro.
Mas o que talvez vejamos de mais grave não é um futuro hollywoodiano, e sim algo capilar na sociedade. O problema mais real e imediato é a substituição do diálogo humano por chatbots — entre eles, o mais famoso: o ChatGPT, da OpenAI.
A informação mais alarmante, digna de fazer os teóricos da distopia corarem, é o fato de que, em 2024, o principal uso do chatbot foi para orientação na vida pessoal. E, mais grave ainda: como substituto da psicoterapia.
A ascensão do ChatGPT e de outras IAs generativas como “terapeutas improvisados” aponta para impactos negativos significativos. Muitas pessoas recorrem à IA por sua acessibilidade ininterrupta, baixo custo (ou gratuidade) e pela percepção de ausência de julgamento — o que pode representar alívio para quem se sente estigmatizado ao buscar ajuda profissional.
A rapidez nas respostas também é um atrativo.
O ChatGPT, apesar de sofisticado, é apenas um modelo de linguagem. Não possui consciência, empatia real, capacidade de estabelecer vínculo terapêutico genuíno, tampouco habilidade para compreender as nuances complexas da experiência humana: simbolismos, históricos pessoais, contratransferência.
Uma das pulsões mais importantes no trabalho psicoterapêutico é o silêncio.
Para transtornos mentais mais complexos — esquizofrenia, transtorno bipolar, TEPT severo — a IA não tem competência para diagnosticar, propor planos de tratamento adequados ou encaminhamentos urgentes. Isso pode agravar o quadro da pessoa ao adiar sua busca por ajuda profissional.
A IA pode “alucinar” ou fornecer informações incorretas — o que é extremamente perigoso em saúde mental. Um caso recente nos EUA escandalizou o mundo: um chatbot aconselhou um adolescente a “dar fim ao seu sofrimento” eliminando a própria família.
Na psicanálise, o cerne do processo terapêutico é a relação intersubjetiva entre analista e analisando. É nesse espaço de encontro que se compreendem e trabalham fenômenos como:
Transferência — quando o paciente projeta no analista sentimentos e padrões de relacionamento de figuras importantes do passado;
Contratransferência — as reações inconscientes do analista ao paciente.
Uma IA, por mais avançada que seja, não possui inconsciente. Não sente. Logo, não pode vivenciar ou manejar esses fenômenos, essenciais para uma análise profunda.
Outro aspecto: a escuta psicanalítica vai além das palavras.
Busca-se captar lapsos, silêncios, associações livres, sonhos e gestos — o que emerge do inconsciente. Uma IA, por mais que processe linguagem, não possui a capacidade de interpretar essas nuances e o não dito de forma genuína.
Ela não compreende o caráter simbólico do sintoma ou do sofrimento psíquico.
Na psicanálise, a presença e o desejo do analista são fundamentais: seu compromisso ético de sustentar a escuta, de não ceder em seu desejo e de oferecer um espaço onde o inconsciente possa emergir.
Uma máquina não tem desejo. Nem ética no sentido humano. Apenas programação.
Para que se alcance um resultado clínico efetivo, é necessário que o desejo do sujeito seja sustentado em análise. Para tanto, o desejo do psicanalista precisa vir à tona. Ele se nega a criar uma demanda para o analisando — e, com isso, mostra-lhe o que a IA jamais poderá mostrar (pelo menos, por enquanto… rsrs): o limite humano.
O que um chatbot não pode oferecer é a finitude — os contornos que a vida nos impõe. A literatura, sim, é o espaço legítimo da alucinação. Já o chatbot tende a uniformizar respostas e construir raciocínios homogêneos.
E isso, obviamente, pode trazer graves problemas à saúde pública.
No fim, é preciso concordar com Aldous Huxley:
“Em tempos normais, nenhum indivíduo são pode concordar com a ideia de que os homens são iguais.”
Sempre é tempo de desatar nós.
Prof. Dr. William Figueiredo é filósofo, psicanalista, pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e doutor em Ciências da Religião. Especialista em Psicopatologia e Bem-Estar Social pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, atua com atendimento clínico online, supervisão e assessoria em desenvolvimento humano e educacional. Professor colaborador na Universidade Metodista de São Paulo e no Instituto Ânima, forma educadores em Educação Socioemocional. Ministra palestras, formações e workshops voltados à escuta qualificada, saúde mental e processos educativos.
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